terça-feira

Vontade vazia

Eco na casa vazia.
Quando falo, minha voz me faz companhia.
Não é o que preenche o espaço...mas até engana quando não se olha.

Engana bem alias.
Quando abro os olhos, nem parece minha.
Dá vontade de encostar pra ver se é de verdade.
Pra ver se tem carne e osso como parece.

Minha voz dá vida às coisas ocas que imito.
E assim, encho a casa com figuras transparentes.
Elas transbordam pelas portas e janelas.
Caem no meu colo e ainda assim não encostam em mim.

A casa vazia agora está cheia.
Cheia de nada.
Nada que é todo meu.

Sopro

Parei pra ver.
Esperei a ventania passar, pois nunca se sabe se ela trará alguma coisa.
Quando o vento é forte, tira os barcos da água, e os põe no telhado de casa pra navegar.
Ela trouxe exatamente vários barcos.

Saí quando tudo acalmou, e busquei o timão de um deles.
Dentre muitos quebrados, achei um que estava intacto.
Manobrei-o no seco, já sabendo onde ele iria chegar.
E fiquei ali, curtindo seu movimento estático por um tempo.

Na verdade, dei chances pro vento voltar e me levar embora.

Uma hora outra ventania voltou forte, e começou a arrastar tudo de volta.
Pelo menos a principio, eu achei que era de volta... Mas não era.
Posso até saber de onde é que o sopro trás o barco.
Mas não posso dizer, agora no ar, pra onde ele vai nos levar.

quarta-feira

Pele nas paredes

Escrevo, pois com a distância as coisas são muito mais seguras.
Levantei paredes ao meu redor e coloquei suas coisas em pequenas molduras.
Enchi o armário com suas cartas.
Preguei suas fotos na cabeceira da cama.
Envernizei a coisa toda, e agora você está fora de perigo.
Aqui você não envelhece.
Sua cara plastificada me comove.
Até me arranca um sorriso quando vejo que você não pode piscar.
Mas também me deixa triste quando percebo que suas cartas e fotos não podem me tocar.

Quando abro a janela, a única que tem, abro só pra ventilar.
Demorei anos pra juntar todas essas coisas...
Não posso reclamar da frieza.
Aqui seus cabelos continuarão castanhos mesmo quando forem brancos.
e seus olhos continuarão verdes, mesmo quando não existirem mais.

quinta-feira

Sonho pesado

Não importa quão suave seja o toque, despertar é sempre um ato brusco e inevitável.
A matéria endurece, o ar queima os pulmões, a luz explode nos olhos.
Você percebe, e sabe quando pára de sonhar.

É um ato diário.
Ás vezes lembramos de tudo que sonhamos.
Ás vezes a gente distorce os sonhos.
Ás vezes não lembramos de nada.

...Mas sonhar, a gente sonha sempre.

segunda-feira

Voz. Letra. Palavra.

Truquezinhos da mente e gestos com a língua.
Som, rabisco, palavra.
A idéia do roteirista no papel.
A declaração do apaixonado no vento.

Ausente, mas assustadoramente real.

Turbilhão de intenções filtradas pela pausa.
A idéia é engolida a contra gosto, por necessidade.
Assim o silêncio revela a vontade.
E a vontade se esconde atrás do silêncio.

terça-feira

Piscar de olhos

Um pouco de agua fria no rosto:
Tensiona os musculos que há muito estava descansados.
Coloca no lugar os reflexos que quase nunca são utilizados.
Acorda a mente que ficou muito tempo desligada.

Coisas que se acontecem para definir uma posição que antes não estava certa.

Um belo soco na cara:
Destrói ossos que você nunca imaginou que tivesse.
Apaga os reflexos que você sabia que tinha.
Desliga a mente que teima em ficar acordada.

Aí, o corpo reage aos toques como um botão que liga e desliga.

Dá pra perder a noção de onde se está, do que se pode fazer e também do que se é.
Uma lampada apagada pode estar queimada.
Uma pessoa de olhos fechados pode na verdade estar acordada.
O contrário que engana e prega peça, esperando atenção para que sua ação possa surtir efeito.

A vida pisca.
Acende e apaga.
Acende.
Apaga.

Vontade de gastar o tempo

Eu penso.
Sou forçado a pensar.
Penso desde que nasci.
Por mim, eu não pensaria em nada.
O mais fácil é se deixar levar.

A correnteza puxa pedras, o vento leva folhas...
A vontade leva o homem...

É, no fundo a gente não pensa.
A gente pensa que pensa.
Na verdade a gente gasta o tempo.
E gastamos o tempo para torná-lo valioso.

Afunde comigo

Fica

Mais um pouco, vai

Não vá embora

Gosto de você por perto

Não sei o que seria de mim se você estivesse longe

Sinto meus pés afundarem no chão quando você finge que não me conhece

Um dia vou acabar sumindo assim, sabia? Engolido pela terra.

Vai, afunde seus pés com os meus...só um pouquinho

Isso, fica aqui comigo

Pode fingir o que quiser. Não ligo mais.

Se a gente afundar, pelo menos estamos juntos certo?

Isso é ótimo

É tudo que eu sempre quis.

quinta-feira

Pó, e pó

Sente o peso da poeira que cai sobre você?

Ela não é nada sozinha, vem sem pedir permissão, e arranja seu espaço nos vãos como se fosse feito especialmente pra preenchê-los. O grão, a particula, a célula, o nucleo...seja areia ou um pedaço de pele morta, você sente o peso do pó?

Massa diluida em inumeros pedaços espalhados por ai, faz-me crer que em toda uma vida posso ter acumulado alguma porcentagem de mim em algum outro lugar que não é aqui.

sábado

Mudo

Morda a lingua e a segure-a dentro da boca para que as palavras não possam escorrer pelos dentes.
Esse vazamento que preenche a sala a cada segundo marca seu tempo na vida dos outros.
O silêncio faz o tempo parar.

As horas sincronizam nossos momentos e inserem coordenadas em um mapa cheio de referências. Apague o espaço imaginário, pois incerteza não sustenta paredes muito fortes.
O silêncio faz os lugares desaparecerem.

domingo

A Jaula Macia

O corpo é uma jaula macia.
Guarda em si algo incontrolável, mas as grades não conseguem esconder a fúria do que guarda.
Se debate nas grades, empurra a pele pra frente, detona os parafusos.
Não se precisa de motivos muito fortes para fugir de onde está aprisionado, mesmo que a prisão seja mais confortável que o lado de fora.



Se a jaula não treme ou se o bicho não sai, ninguém presta atenção.
Não me pergunte a razão.
Todos esperam pra ver o grande animal em ação, contanto que seus dentes não passem das grades


Por isso, o conforto ainda é sedativo.
Mesmo que a jaula balance, o portão não deve cair.
A segurança de quem nos vê depende disso.

quarta-feira

Miragem Torpe

Ela chega.
Quando menos se espera, ela atravessa a pele.
Se alastra pelo corpo elegantemente, consumindo com um desejo voraz qualquer manifesto de fé.

O chão amolece, o céu desce, a vista embaça, o sangue ferve.
Destrói a mente com graça e ternura. Apaga todos os cálculos, e recomeça uma vida sem usar a razão como guia.

Ai ela vai embora.
Esquece a cama desarrumada, a porta aberta, e até o vestido sobre a mesa.
Mas ela levou a sua razão no bolso, e deixou a bagunça toda pra você.
O mundo endurece.
O edredom não dobra, a porta pesa toneladas e o vestido fica mais bonito.

...O vestido fica sempre mais bonito.

Acho vou deixá-lo onde está.
Afinal, quem sabe um dia ela não possa voltar?

domingo

Minha ou outra cabeça

É o que falta

A minha cabeça e mais outra...
Pois a minha, sozinha, não serve pra nada.
Não me comunico com pedras, árvores ou mesmo computadores.
Infelizmente eles não retribuem a atenção, embora as vezes pareçam ser os melhores ouvintes.

Cabeças são essenciais.